Ira!
Naquela manha cinzenta, Marcelo abaixou-se no alto da colina, e com a ajuda dos seus velhos binóculos espreitou o terreno a sua frente.
A planície desértica, coberta por cinzas que caiam do céu de tempos em tempos, se estendia por pelo menos vinte quilômetros, até se encontrar com um grupo de elevações. Grande parte dela era coberta pelas ruínas antigas das gigantescas construções que os mais antigos chamavam apenas de “A Cidade”.
Contava-se que outrora fora um lugar magnífico, assim como milhares de outros lugares como esse por todo o mundo, mas que foram destruídos por uma grande guerra. As grandes tribos do passado usavam uma arma que criava um gigantesco sol, que queimava, destruía e envenenava tudo ao seu alcance. Aquela arma nunca fora usada perto de “A Cidade”, apenas em outras cidades muito longe, mas seus efeitos afetaram mesmo os lugares mais distantes.
Marcelo sempre gostara de ouvir as historias que os mais antigos contavam, sobre os tempos de antes daquela guerra, e sempre ficava imaginando o que sua tribo poderia fazer com uma arma como aquela, capaz de criar um sol poderoso o bastante para destruir um assentamento gigantesco como “A Cidade”. Se tivesse algo tão poderoso, poderiam se opor até mesmo contra as grandes tribos do sul, e não mais temeriam os nômades. Poderiam pegar toda a comida da qual precisassem.
Mas nunca encontrara tal arma, e ninguém sabia onde ela poderia ser encontrada. Um dos mais antigos falara que ela apenas existia em um longínquo território ao norte, impossível de ser alcançado mesmo pelo cavalo mais veloz ou pelo camelo mais gordo, e nenhum homem poderia alcançar essa terra caminhando.
Centrou sua atenção nos arredores do assentamento em ruínas, percorrendo com os olhos de vidro toda a extensão da planície e as poucas ruas visíveis. Não encontrou nada que pudesse representar perigo imediato. Nenhum sinal de fumaça entre os escombros ou de animais de carga nas extremidades.
Guardou o binóculo e desceu a colina com a carabina em punho, largando atrás de si uma coluna de poeira e cinzas que o vento soprava para longe, onde se depositavam novamente sobre o chão. Colocou seus óculos protetores e ajeitou sua mascara de pano sobre o nariz e a boca. Era extremamente desagradável o sabor daquela poeira misturada com as cinzas de milhões corpos, e seria pior se fosse pego por uma tempestade de poeira sem óculos e mascara.
Caminhou ao longo da mesma estrada, coberta com uma miríade de pedras negras coladas uma a outra, que saia da cidade, serpenteava pela planície e subia as montanhas até o território de sua tribo. Pelo caminho encontrou os marcos tão conhecidos da tribo que há muito construíra aquela cidade.
Acompanhando a estrada estavam os postes de pedra bem cortados que os mais antigos diziam que levavam “luz” a todos os lugares; que levavam a todos os lugares, Marcelo não tinha duvidas, pois por onde passava, dentro e fora da cidade, até mesmo nos arredores de sua tribo, eles estavam, mas nunca viu nenhuma luz saindo deles. Toda a luz que conhecia era a do sol, das fogueiras e do grande gerador de sua aldeia, que os supria com calor no inverno e musica nas noites quentes de verão. Passou pelas carcaças de uma centena de carros queimados e cobertos pela ferrugem, dentro e fora da estrada.
De todos os lados havia restos de velhas construções de madeira e pedra, destruídas pelo tempo e cobertas por poeira e cinza. Aqui e ali construções maiores e mais sólidas despontavam sobre as demais e sobre a cinza acumulada. Em outras construções de metal jaziam no chão, em pilhas marrons de metal comido por ferrugem.
Parou sob a sombra de um prédio, onde uma parede cedera e se inclinara sobre a rua. Sentou em um degrau de pedra e retirou de sua mochila uma vasilha com água e um pedaço de carne seca. O primeiro gole de água desceu meio amargo por sua boca e garganta, talvez devido a cinza em seus lábios, os outros desceram frescos e sem gosto algum. Comeu o pedaço de carne, tomou outro grande gole, guardou tudo e recomeçou a caminhar.
Chegou nas grandes construções meia hora depois e começou a procurar seus pontos de orientação entre os escombros.
Reconheceu uma grande arvore seca, em frente a um prédio baixo no cruzamento entre duas ruas, e seguiu para a direita, sempre com a carabina firme em suas mãos e olhos e ouvidos atentos. “A Cidade” era perigosa, muito mais perigosa do que as estradas, e muitos de sua tribo vieram até aqui e nunca mais voltaram. Essa era a terceira vez que ele descia até ali, e pretendia voltar vivo como das duas vezes anteriores.
Logo a frente encontrou um novo ponto de referencia: uma grande construção com uma torre encimada por uma cruz. Ali diziam ser a casa de Deus, mas Marcelo nunca o vira por ali, e pelo estado da casa, ele já deveria ter abandonado ela há muito tempo e fora morar em outro lugar, talvez em algum lugar muito melhor longe daquele.
Andou pela rua à esquerda da construção, seguindo ao longo de sua cerca de metal e pedra. Algumas aves, grandes e negras estavam empoleiradas sobre o telhado da construção, e o fitaram, depois voaram para longe.
Seu e ultimo ponto de referência, era uma construção baixa, com dois arcos dourados sobre um telhado vermelho. Seguiu em frente, e afobado por estar perto, descuidou-se.
Cruzou correndo um terreno em uma e esquina, e acabou caindo no meio de um acampamento com três vagabundos em torno de uma fogueira. Estavam em um terreno vazio em uma esquina, protegido por uma cerca de ferro tão enferrujada que podia se desfazer ao toque.
- Olha só o que temos aqui – disse o primeiro, com um grande sorriso de uma boca sem dentes.
- Hehehe – riu o segundo, puxando uma grande faca, longa e fina de tanto ser afiada. – Prefiro carne de cachorro, mas esse serve.
E avançou em direção ao rapaz caído, com a faca em punho, pronta para o ataque.
O terceiro homem avançou sobre o segundo e lhe desferiu um soco certeiro de direita, derrubando-o.
- Seu idiota – disse – Temos mais comida do que podemos carregar.
Marcelo olhou para um canto e viu uma grande quantidade de saco e caixas de madeira, com certeza roubados e viajantes desavisados ou de alguma tribo fraca. Com movimentos imperceptíveis começou a movimentar sua arma em direção ao terceiro homem, que agora segurava a faca.
- Precisamos de duas coisas – continuou o terceiro homem, brincando com a faca e olhando para Marcelo com cara de deboche. – Um novo carregador e um viadinho para me esquentar nas noites frias, já que o ultimo não agüentou.
Ele apontou para um canto, alem da pilha de mantimentos, onde o corpo de uma criança, com talvez menos de dez anos, jazia encostado, vestindo uma estranha roupa clara, suja de poeira, cinza e sangue em muitos pontos. Se não fosse pela mascara, Marcelo já teria sentido o cheiro de morte do menino um pouco acima do cheiro de morte velha da cidade e o fedor daqueles homens. Pensar no que haviam feito com aquela pobre criança lhe causava náuseas, e lhe dava uma coragem renovada.
O tiro soou incrivelmente alto no silencio das ruínas, e reverberou pelas construções enquanto o terceiro homem caia para trás, sobre a fogueira, com o abdome aberto. Sangue e fluidos estomacais espirraram sobre a mascara e os óculos de Marcelo, que rapidamente os tirou e apontou a arma para o primeiro homem, não perdendo de vista o segundo, que ainda estava inconsciente no chão.
Mesmo com a barriga dilacerada pelo tiro, o terceiro homem não morreu, e gritava horrivelmente enquanto as chamas o consumiam, primeiro seus trapos, e depois sua carne.
- Você – disse para o primeiro homem. – Ajude seu amigo.
O outro se adiantou e tentou puxar o companheiro para fora do fogo.
- Não foi esse tipo de ajuda que eu falei...
O homem olhou-o sem entender, depois pareceu compreender. Pegou uma pedra duas vezes maior que seu punho e usou-a para arrebentar a cabeça do companheiro agonizante. Ele gritou nos dois primeiros golpes, depois silenciou quando seu crânio já despedaçado deixou a massa cinzenta escorrer para o chão.
Um cheiro de carne queimada enchia o ar, misturando-se as dezenas de outros odores do ambiente.
- Agora o outro – disse Marcelo quando o segundo homem gemeu e tentou se erguer. – Rápido!
O homem obedeceu, e com um pouco mais de dificuldade devido a uma singela resistência da vitima, estraçalhou o crânio do antigo companheiro. Jogou a pedra suja de sangue e fluidos cerebrais para um lado e ficou esperando uma nova ordem, ou um tiro certeiro no peito.
- Jogue os corpos no fogo, o dele e o do garoto – disse indicando os corpos com a arma.
Novamente o homem obedeceu, jogando primeiro o corpo do amigo, depois o do garoto nas chamas, que começaram a consumi-los em uma orgia de fumaça negra e cheiro de carne queimada.
Chegou perto do homem e lhe desferiu um golpe com a coronha da arma na altura de seu estomago. Quando este curvou-se devido à dor, desferiu outro golpe, dessa vez contra sua testa, que se abriu de um lado a outro liberando um rio de sangue enquanto o homem tombava ao chão, erguendo uma parede de cinza e poeira fina ao seu redor.
Marcelo rapidamente amarrou seus pés e mãos com algumas tiras de couro que trazia junto à mochila, depois o amarrou a um poste baixo em uma das extremidades do terreno. Ali o deixaria largado a própria sorte. Talvez outros nômades o encontrassem e matassem logo, ou talvez ele morresse devagar, de a sede. Não importava.
Abriu as caixas e sacos, onde encontrou, para sua surpresa, apenas comida enlatada, em latas de metal novas e brilhantes. Em suas tampas estavam marcadas com tinta negra, em letras de um tipo que até agora ele só havia visto em velhos livros, que revelava o conteúdo de cada lata. Apenas vira latas abertas, que hoje serviam para outras finalidades, e seu pai um dia lhe explicara o que elas traziam em seu interior.
Mesmo essas latas, usadas para diversos fins, desde cozinha até remendar telhados, estavam com sinais de ferrugem, mesmo com todo o cuidado. Aquelas a sua frente eram cilindros de prata reluzentes, sem um grão de ferrugem em sua superfície.
Pegou uma delas, cujas palavras impressas na tampa diziam “Feijoada” e abriu. Pegou com os dedos os grãos escuros e levo-os a boca, um pouco inseguro, e começou a mastigar. Uma confusão de sabores e sensações tomou conta de sua boca, coisas que nunca havia provado antes. Atacou a lada com dedos ávidos, levando a boca grandes quantidades de feijão e pedaços suculentos de carne de porco, depois sorveu o caldo grosso que ficara na lata e lambeu os dedos.
Duas latas depois, uma onde se lia “Macarronada” e outra com “YakiSoba”, Marcelo andou até onde havia amarrado o primeiro homem, que a muito já havia despertado. O sangue que escorrera do corte cobrira seu rosto, deixando-o com uma mascara negra de sangue coagulado.
- Onde vocês encontraram essas coisas? – perguntou abaixando-se em frente ao homem.
O homem escarou-lhe, depois falou:
- Fora da cidade. Alguns quilômetros a norte, onde encontramos também o garoto e a mulher.
- Que mulher? – Marcelo quase gritou.
- Uma mulher de cabelos dourados. Ela não agüentou a curra.
Marcelo, tomado de cólera, começou a golpear o homem com a coronha da arma até que, sob seu pescoço, só sobrou um mingau de carne, cabelos e lascas de ossos, misturados com uma geléia arroxeada. Odiava nômades estupradores quase mais do que odiava os nômades canibais, e imaginar o que fizeram com a tal mulher e a pobre criança lhe fazia perder a cabeça.
Guardou algumas latas em sua mochila e caminhou seguindo seu objetivo, deixando o terreno com os corpos e a comida para trás. Havia marcado bem o lugar, e amanha ou depois tentaria voltar com outros de sua tribo e recolher os milhares de latas.
Retirou o cartucho deflagrado da arma e colocou um novo enquanto caminhava apressado pelas ruas cobertas de entulho. O barulho dos tiros poderia ter atraído outros nômades, que devido a sua demora na refeição, já poderiam estar muito perto, espreitando atrás das janelas mortas nos prédios, ou do outro lado da próxima pilha de escombros.
Começou a correr, com seus pés erguendo uma trilha de cinzas, por entre carcaças de carros e outros veículos maiores, já indistinguíveis pela ferrugem. Saltou sobre postes caídos e desviou de grandes crateras que se abriram nas ruas onde o asfalto cedera.
Suado e exausto, chegou em frente ao edifício que procurava. Era uma construção baixa e larga, com uma enorme escadaria levando até a enorme porta que dava acesso ao seu interior.
Ele subiu as escadas e entrou na gigantesca construção. Em seu interior existia uma grande galeria que corria por alguns quilômetros dentro da construção, com túneis que se bifurcavam e voltavam a se encontrar, para então se abrirem em amplos salões. As paredes dessas galerias era cobertas por vidro, com aberturas de tempos em tempos.
Em sua tribo, apenas Marcelo havia adentrado na construção até os seguimentos alem de onde a luz externa iluminava, mas não se arriscara no interior profundo. Por isso, sempre que a tribo necessitava de algo desse lugar, era ele o encarregado de tão serviço. Todo esse medo devia-se as velhas lendas contadas pelos antigos sobre criaturas terríveis vivendo em seu interior, sobre espíritos malignos que ali habitavam e carregavam os visitantes desavisados para as profundezas negras.
Olhando a situação do lugar, sem entulho nas galerias e sem marcas na cinza que ali também cobria o chão, Marcelo acreditava que tais lendas não eram contadas apenas para assustar as crianças de sua tribo, e talvez houvesse um fundo de verdade em tudo isso.
Caminhou pelas galerias até sair do trecho iluminado, depois entrou em uma das aberturas nas paredes de vidro. Acendeu uma lamparina que trazia presa a mochila e começou a vasculhar o lugar. Revirou caixas e prateleiras até encontrar o que o conselho dos anciãos lhe havia pedido. Guardou o objeto na mochila, cuidadosamente enrolado em trapos grossos, apagou a lamparina e saiu para a rua.
Olhou para o sol e calculou que não devia passar do meio-dia, e não ficariam preocupados com ele até o cair da noite, de forma que resolveu ir atrás da origem das latas. Talvez fossem feitas por uma nova tribo, ou talvez houvesse em algum lugar um suprimento gigantesco delas, o que poderia conceder fartura para sua tribo por muitos meses.
Seguiu as ruas cheias de escombros em direção ao norte, sempre com a espingarda em punho firme e olhando duas vezes para cada janela, monte de entulhos ou esquina. Uma hora depois chegou até os limites da cidade, onde os prédios davam lugar a grande e cinzenta planície.
Ao longe, quase no horizonte, viu uma fina coluna de fumaça que subia mais clara que o céu por trás de uma pequena elevação do terreno. Poderia ser muitas coisas, mas sua intuição, ou sua curiosidade acirrada, lhe dizia ser o local onde os três nômades roubara a comida e o garoto.
Sondou a planície a sua frente com os binóculos a procura de qualquer sinal que pudesse denunciar a presença de outros nômades no caminho. O caminho parecia estar livre.
Ele andou por até quase metade da tarde, caminhando pelas cinzas e pelos escombros pelos quais passava vez ou outra. Tinha pressa de chegar até o local de onde surgia à coluna de fumaça e voltar para sua tribo antes do escurecer. Não parou nem para beber água nem para comer. Não queria perder tempo com isso e se ver na estrada, ou pior, nos arredores da cidade, no anoitecer.
No meio da tarde chegou até a elevação, atrás da qual ficava a origem da fumaça, que agora era apenas um fio diáfano ascendendo.
Subiu a colina com cuidado, evitando pisar em pedras soltas ou qualquer coisa que pudesse denunciá-lo. Chegou ao topo e olhou para baixo.
Um carro grande, de um modelo que ele nunca havia visto antes, e sem um grão de ferrugem estava estacionado ali embaixo. De uma de suas laterais, que ficava na sombra da colina àquela hora, estendia-se uma tenda cinzenta. Sob a tenda estavam mesas, cadeiras e ao largo a fogueira, agora quase apagada.
Marcelo desceu a colina, com um pouco menos de cuidado agora do que na subida. Sempre com a arma em punho, vasculhou tudo.
Contornou o carro e abriu as duas grandes portas em sua traseira. Ali dentro, sobre uma poça de sangue estava o corpo da mulher, com sua pele branca desnudada pela roupa rasgada e os cabelos dourados com crostas negras de sangue seco. Marcas arroxeadas cobriam seu rosto inchado, seu pescoço e os seios. Os resto visíveis de sua roupa lembravam as que o garoto usava, antes de ser consumido pelas chamas.
Ele fechou as portas com o cano da arma, e sentou-se em uma das cadeiras sob a lona. Tirou de sua mochila a vasilha de água e uma das latas de comida.
Estava com o gargalo da vasilha em seus lábios, com a água morna começando a molhar sua língua quando sentiu uma dor lancinante em seu antebraço direito. Segundos depois, quando o estrondo do tiro chegou a seus ouvidos, ele soltou a vasilha, que bateu no tampo da mesa e caiu no chão, espalhando a água pelas cinzas e poeira, criando uma pequena poça no chão seco.
Segurou seu antebraço dilacerado com a mão esquerda e sentiu que os ossos havia sido partidos pelo tiro. Sangue quente escorria por seus dedos enquanto ele se levantava da cadeira.
O segundo tiro atingiu seu joelho esquerdo e ele caiu, mordendo os lábios devido à dor, com a cara na cinza. Rolou de dor e enfim fechou os olhos conseguiu gritar.
Quando os abriu dois homens estavam parados a sua frente, e um terceiro vasculhava sua mochila. Os três vestiam-se com roupas claras como a mulher morta e o garoto, e usavam chapéus de pano.
- Verme – disse um dos homens pisando sobre seu joelho ferido.
- Eu falei que não adiantava tentar ajudar essa gente – falou o segundo.
Um quarto homem apareceu, descendo a colina, sobre a qual outro carro estava parado. Quando falou, transpareceu sua autoridade sobre os demais.
- Parem logo com isso. Não temos tempo a perder com um nômade sujo. Vamos embora.
Carlos não gostava nada daquilo. Mil vezes havia dito que não havia possibilidade de travar conversa com os selvagens fora das cúpulas, mas gente idiota como Bernardo e sua esposa não escutavam. Então, saiam para distribuir comida e tentar convertê-los em sua nova religião, a qual ele não fazia questão de saber nada, e sempre acontecia algo assim.
Aquele garoto era um vagabundo inútil, com roupas rasgadas e sujas, uma mochila improvisada com milhares de tipos de tecido e tiras de couro de sabe-se lá qual animal. Carregava, com todo cuidado, uma espingarda de dois canos, provavelmente com cartuchos carregados com restos de metal em qualquer tenda encardida, com as extremidades fechadas por cera de velha ou buchas de papel. Isso se eles soubesse o que é papel.
- Não enquanto ele não disser o que fez com meu garoto – Bernardo falou com voz tremula. – Então eu vou fazer o mesmo com ele.
- E só pode ser ele, chefe – falou Gustavo, que vasculhava a mochila do rapaz. – Ele tem muitas latas aqui. Teve ter escondido o resto.
- Tudo bem, mas não demore – Carlos falou, sabendo que qualquer discussão com aquele imbecil levaria uma tarde toda.
- Ei, chefe – chamou-lhe Gustavo. – Olhe isso.
Acenava-lhe com um pequeno embrulho quadrado de pano azul-sujeira. Carlos andou até onde as coisas estavam.
Gustavo entregou-lhe o pequeno embrulho. Ele livrou-o dos panos e fitou por algum tempo, como acionando velhas lembranças. Depois falou:
- Ira!
- O que? – perguntou Bernardo se virando para Carlos, esquecendo momentaneamente do que planejava fazer com o garoto.
- Ira! – repetiu Carlos mostrando o objeto. – É uma antiga banda de rock, de antes da guerra. Esse é um disco compacto, acionado por um leitor laser.
- Igual àquele que tem na sala de recreação do complexo? – perguntou Gustavo.
- Sim. Quando vocês terminarem com ele, podemos voltar e ouvir Ira! Era uma boa banda, acho que vocês vão gostar.
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